1.7.18

Neil Labute: The Wicker Man (2006)


Tem tudo o que eu não gosto: Nicolas Cage, Nicolas Cage e Nicolas Cage. Vá, estou a exagerar. Normalmente, o Cage não me aquece nem arrefece, mas neste "Wicker Man" causa-me irritação. Há uma onda lamechona em todo o filme. Haverá algo pior que terror lamechão? E depois é impossível não o comparar ao de 1973 (também só o vi por causa do de 1973 e agora só me lembrei por causa do de 1973).

Impossível dormir irritado.

* nenhuma caminha *

Robin Hardy: The Wicker Man (1973)

Foi-me apresentado como "um filme de terror ao nível do Shining do Kubrick". Encarei-o como comédia e não foi de propósito, foi tudo em mim que eu não controlo. Isto gerou discussões intermináveis, tendo a questão sido por fim arrumada em "assuntos que não queres puxar quando um jantar está a correr bem" slash "temas para animar noites de natal aborrecidas".

Gosto mais ainda de deixá-lo sem classificação, propositamente desarrumado e sem irmãozinhos. O "Wicker Man" é um filme que se percebe desde o primeiro momento ter sido desejado, nutrido, acarinhado, que alguém se deu ao trabalho e fez um trabalho bom, e isso predispõe uma pessoa a tratá-lo bem, a gostar dele.  

Penso que o dilema terror vs comédia pode ocorrer porque nenhuma coisa pagã me suscita temor ou desconfiança. Zero. As coisas pagãs que passaram por mim e ficaram na minha vida - a árvore de Natal, o dia da espiga, Maio e as giestas, aproveitar os santos populares para celebrar o início do Verão, aproveitar o Natal para celebrar o solstício de Inverno - são todas bonitas e boas.

Já quem desconfie do paganismo é mais "ai coisas pagãs, que medo", "um pentagrama - mata! mata!", "ai hippies", "ai mulheres a dançar nuas na floresta com flores na cabeça", "ai o demónio", "ai a minha alma está perdida". E isto tudo somado dá terror.

Pronto: existe puro terror mesmo mesmo no fim. Mas aí a atmosfera do filme está toda feita e já produziu em mim o efeito de me divertir, essencialmente, de me comover (não sublinho demais que "Wicker Man" é um estranho filme inesquecível que facilmente se torna um favorito) e não me leva de todo para os caminhos do terror.

Quanto a pessoas adultas vestidas de animais (também aparecem no Shining do Kubrick), a minha grande referência é Rémi Gaillard.

Enfim, o "Wicker Man" é um filme ao longo do qual podemos adormecer, até pela banda sonora tão tão agradável, mas merece a nossa atenção. Eu diria: ver uma vez sem adormecer, talvez até convidar amigos porque é óptimo filme para justificar uma pequena festa, e depois tomar a liberdade de ir passando pelas brasas nos visionamentos posteriores.

* 4 caminhas *

5.10.17

Philip Kaufman: Invasion of the Body Snatchers (1978)

Lembro-me deste filme sempre que penso em pessoas botox, sendo as últimas de que tive conhecimento a Bibi Andersson e a Tina Turner. 

É parecido. Algo que começa não se sabe como ou porquê a varrer e substituir, com força invencível, toda a individualidade. 

Espero que o apocalipse botox não nos leve também o Donald Sutherland. 

Dorme-se bem a ver o "Invasion of the Body Snatchers".

* 3.5 caminhas * 

7.9.17

Bergman: Persona (1966)

Não sei bem como é que ali chegámos ou porquê, mas quando eu tinha uns 12 anos, a minha  mãe começou a chamar-me para o sofá enquanto via filmes na RTP2. Não me lembro quando vi Bergman a primeira vez ou o "Persona" a primeira vez e não sei quantas vezes vi o "Persona". Se passo muito tempo sem revê-lo começo a sentir falta de uma higiene qualquer, irritação cutânea incluída.

Creio que Elizabeth e Alma são uma e a mesma pessoa. Penso que a cena quase final, em que se enfrentam na luz e na escuridão, com metade do rosto visível e metade invisível, é um tratado sobre a personalidade, sobre aquilo que em cada um de nós queremos e podemos mostrar ou não, sobre a liberdade de escolher entre uma e outra coisa. Um tratado sobre soberania individual e interior. Mas Bergman não era de escrever tratados, Bergman fazia filmes. Não vamos ofendê-lo mastigando o "Persona". Há essas questões sobre luz, escuridão e soberania, sim, e quando permanecem por verbalizar são arrepiantes e fazem com que possamos voltar sempre ao filme, porque este é um filme que nunca se acaba. 

E são duas belas máscaras os rostos Liv Ullmann e Bibi Andersson nessa cena (é com pesar que noto que Bibi Anderson é, presentemente, uma senhora botox).

Adormeci várias vezes a ver o "Persona", acordei outras tantas a vê-lo e foi sempre bom.

* 5 caminhas *  

3.3.16

Sokurov: Mãe e Filho (1997)

Alguma estranheza inicial a impedir-me de entrar no filme, seguida de uma empatia tão profunda que deixei de conseguir explicar por que é que gosto do "Mãe e Filho" sem que a voz comece a tremer-me. O teclado não treme, mas na mesma emudeço.

Não há nada mais íntimo que aquilo que ali está e assim se mostra, há? Não há mais nenhum filme... bom, o "Viagem a Tóquio" do Ozu, talvez, a cena do relógio. Talvez haja mais um ou mais dez filmes e talvez eu não consiga exprimir-me. Não vi outro filme tão íntimo sobre algo existencialmente tão relevante. E aquela intimidade toda, aquela proximidade e aquela solidão, que são totais e absolutas, são também pele e sangue, e nunca conheceremos nada numa escala tão maravilhosa e devastadora.

"Mãe e Filho" não é um filme sobre a morte ou a separação ou a doença ou qualquer imperfeição da vida. Há uma borboleta. E há uma sequência em que o filho dá uma grande volta e se ouve o som do vento, das árvores e do mar. Lembro-me desses sons como de diálogos noutros filmes, não consigo esquecê-los, fazem-me voltar: não são música, não são voz, e chamam-me de regresso ao "Mãe e Filho" como pessoas me chamariam. 

Já o vi no cinema, em cafés de livrarias e em casa, em sessões estranhíssimas de "vou só ver um bocadinho do início", com o rabo na pontinha do sofá, e depois não consigo parar. 

Nunca adormeci com o "Mãe e Filho" mas acredito que quando acontecer só poderei ter sonhos bons ou dormir como uma pedra.

* 5 caminhas *

31.12.10

Kerthy Fix, Gail O'Hara: Strange Powers - Stephin Merritt and the Magnetic Fields (2010)

Os Magnetic Fields e todas-as-coisas-Merritt são puro conforto: a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, haverá música interessante para ouvir, com instrumentos bem tocados e letras bem escritas, que fazem pouco do dramalhão.

E assim é este documentário, com aquele extra de ouvirmos Merritt a afinar vários instrumentos, como naqueles pedacinhos de concerto antes dos concertos.

Não pestanejei e (não "mas": "e") um amigo meu dormiu o tempo todo, com um sorriso nos lábios.

* 5 caminhas *